domingo, 5 de outubro de 2008

No jornal Público de hoje

Monárquicos, católicos e historiadores de várias tendências contestam o carácter ideológico das comemorações da República
"Quem era o Almirante Reis? Alguém sabe? E o Barata Salgueiro?" Carlos Bobone, historiador, alfarrabista e monárquico, faz as perguntas, retórico e provocador. "E o Elias Garcia? Um estrangeiro que chegue a Lisboa pensa que o Almirante Reis e o Miguel Bombarda são os dois maiores heróis nacionais".
A toponímia é um dos temas tratados no sítio da Internet da Plataforma monárquica para o Centenário da República. Outro é o dos presos políticos, que eram aos milhares, maltratados e humilhados, segundo os documentos apresentados pelo grupo de cerca de vinte personalidades monárquicas.
Era comum o uso do "capuz penitenciário", que se colocava na cabeça dos presos políticos, que eram, aliás, tratados como presos de delito comum. Outro tema é o défice de democracia. "Fazem-nos acreditar que havia, durante a 1.ª República, multipartidarismo, liberdade de imprensa e eleições justas", diz Bobone.Essa versão "surge nos manuais escolares, nas exposições, nos catálogos dos museus. E as pessoas pensam que deve realmente ter sido assim, porque isso lhes dá um certo conforto". A verdade é que o Partido Republicano Português (PRP) dominou o Parlamento e ganhou todas as eleições, que eram falsificadas, explica Bobone.
A liberdade de imprensa também não existia. Os republicanos inventaram várias formas, algumas muito criativas, de sufocar os jornais. Como, segundo a lei, apenas eram proibidos a pornografia e os boatos, "davam muita latitude a estes conceitos". Dizer que a monarquia era melhor do que a república era considerado um boato, criticar o Governo era uma atitude pornográfica.
Outro método era encorajar os assaltos a jornais por parte de grupos de arruaceiros. No dia seguinte ao assalto, a polícia encerrava o jornal, alegando que ele provocava distúrbios na ordem pública. Outro estratagema ainda era prender os ardinas, impedindo que a edição do jornal se vendesse, quando continha algum artigo inconveniente. Alguns jornais eram fechados e apreendidos tantas vezes, que acabavam por falir.
Outra das marcas distintivas dos republicanos de 1910, segundo Bobone e João Távora, que apresentaram esta semana a Plataforma monárquica, era o seu desprezo pelas mulheres. Não lhes reconheceram o direito de voto. A explicação: eram reaccionárias e iriam votar nos padres."Outro traço pouco conhecido dos republicanos é o seu puritanismo", diz ao PÚBLICO João Távora. "Queriam proibir a confissão, para que as suas mulheres nunca ficassem sozinhas com outro homem".Perante estas características dos protagonistas da revolução de 1910, não fará sentido comemorar o aniversário do acontecimento, e muito menos o seu centenário, daqui a dois anos, dizem os monárquicos. "Nestes 100 anos, foi inventada uma História", diz Távora. E Bobone acrescenta: "Queremos lembrar a República como ela realmente foi. É considerada a precursora ideológica do regime em que vivemos. Nós pretendemos mostrar que isso não é verdade".
Católicos críticosVozes da Igreja Católica têm emitido críticas à forma como estão a ser planeadas as comemorações oficiais do centenário da República, e manifestado interesse em participar nas várias iniciativas. "Estamos atentos e empenhados em reflectir sobre estes temas, a propósito do centenário da República", disse ao PÚBLICO Paulo Fontes, do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica. Desmentiu que esteja a ser preparado algum "livro negro" sobre a 1.ª República, como foi noticiado, mas anunciou estar a participar na redacção de um Dicionário de História da 1.ª República e do Republicanismo, juntamente com várias universidades e instituições científicas, organizado pela comissão das comemorações oficiais.
Em 2011, o Centro de Estudos da Católica promoverá uma reunião para debater o tema das relações entre o Estado e as Igrejas.As comemorações devem ser uma oportunidade para reflectir "de forma aberta e plural" sobre as questões históricas, que não devem ser "reduzidas à sua dimensão político-ideológica", diz Fontes. Não se pronuncia sobre as comemorações oficiais que estão a ser preparadas, mas admite que vigora uma certa "perspectiva historiográfica ideologizada".
Também Rui Ramos, historiador e biógrafo do rei D. Carlos, considera importante "separar a comemoração do conhecimento". É uma "aberração histórica" ver nos líderes da 1.ª República um exemplo de virtudes. "Se hoje chegasse ao poder um partido como o PRP, teríamos seguramente uma guerra civil". Mas não se pode generalizar. "Falar do período republicano em geral é como falarmos de 1975 sem considerarmos as diferenças entre Cunhal e Sá Carneiro".
É um absurdo afirmar que a 1.ª República está na linhagem do regime actual, e que, portanto, celebrar aquela serviria para legitimar este. "A primeira comissão das comemorações [dirigida por Vital Moreira] cometeu o erro de tentar justificar com as ideias republicanas algumas medidas políticas actuais, como por exemplo alterar o código do Registo Civil para permitir os casamentos homossexuais. Se o Afonso Costa ouvisse isso, teria um ataque de coração. Não era possível ser-se mais homofóbico do que ele era".O que deve ser discutido é "o regime comemorativo português", que é "primitivo" e "próprio de países do terceiro mundo". Rui Ramos, historiador e biógrafo do rei D. Carlos, considera importante separar a comemoração do conhecimento.

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