terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Adérito Tavares: A Resposta

Do Professor Adérito Tavares recebi, no mesmo dia (01.01.07), a resposta:

Meu caro Luís A.S., prezado amigo:
Claro que me lembro bem de si. Para o provar, aqui vai o episódio em que nos vimos pela última vez: acompanhava eu uma visita de estudo com alunos meus da Católica, num percurso pela Lisboa queirosiana, quando, em frente ao Espaço Chiado, surge o Luís, de dentro de uma loja de ménage. Avistara-me pela vitrina e não hesitou em sair para me cumprimentar efusivamente, com a alegria e a espontaneidade que o caracterizam. Disse-me que se ia casar e que estava a escolher a lista de prendas. Demos um abraço e eu desejei-lhe as maiores felicidades. Foi assim?
Os seus elogios recebo-os com gratidão mas levo-os à conta da sua estima. Eu creio ser dos raros que, em Portugal, leccionaram em todos os graus de ensino: nos 12 anos de escolaridade dos ensinos Básico e Secundário (antigos ensinos Primário, Preparatório e Liceal) e nos cinco anos de uma licenciatura (na UCP). E não me pergunte que alunos gostei mais de ter, se os meninos de seis anos, que chegavam amedrontados à primeira classe da escola primária, se os jovens universitários que hoje conversam comigo sobre a questão israelo-palestiniana, nas minhas aulas de História Contemporânea do curso de Comunicação Social da Católica. Não lhe saberei responder.
Olhando o meu já longo percurso de professor, podia contar-lhe muitos episódios marcantes, incluindo vários passados no Filipa. Por exemplo sobre a viagem de estudo a Tomar com os alunos do 12º ano do tempo do António Carlos Araújo (a quem eu dei 20 valores em História) e do Luís Miguel Nogueira de Brito; ou sobre muitas outras viagens: às aldeias históricas da Beira, a Salamanca, a Santiago de Compostela, a Madrid e Toledo, etc. É que eu sempre achei que as viagens e visitas de estudo podiam ser excelentes ocasiões para aprender e conviver. De qualquer modo, abusando da sua paciência, conto-lhe apenas um dos tais casos que marcam indelevelmente a vida de um professor:
- Num dia quente de Julho, estava eu a fazer exames orais da 4ª classe, numa escola primária de Setúbal, quando me aparece um rapazinho com o ar mais assustado do mundo. Nenhuma das minhas colegas examinadoras conseguiu arrancar-lhe uma palavra. Desci da mesa do júri e sentei-me ao seu lado; brinquei com ele, contei-lhe uma anedota e abri o seu livro de leitura à toa. O texto falava de cucos e eu perguntei-lhe se sabia como cantava o cuco. Ele abanou negativamente a cabeça e eu desatei a imitar um cuco juntando as mãos em concha e soprando sobre os polegares ligeiramente abertos. Dali por alguns instantes abria-se um sorriso no rosto do menino e abria-se também o seu "vasto" saber de aluno da 4ª classe de antigamente. Sabia tudo e aprovámo-lo com distinção. Isto é importante, mas não é o mais importante. Meses depois, recebo em casa uma carta escrita com letra hesitante: era da avó do menino que eu examinei. Dizia que nunca o seu netinho, criado por ela, tinha sido tratado com tanto carinho; e agradecia-me do fundo do coração. Nunca mais voltei a encontrar o menino do cuco, nem a sua avó, mas ainda hoje guardo aquela carta, cheia de erros de ortografia, como se fosse uma condecoração.
E guardo todas as minhas cadernetas, com as vossas fotografias de crianças ou jovens adolescentes. E guardo as vossas caras desse tempo na minha memória. Não as dos adultos que agora são, muitos de vós já pais de alunos. Por isso, é sempre com um grato prazer que recebo notícias de antigos alunos. Já visitei o vosso blogue e, se o Luís quiser lá colocar esta resposta ao seu e-mail, faça favor.
Diga também ao Miguel Xara-Brasil que eu fiz uma completa reportagem fotográfica, a cores, do famoso jogo de futebol entre o Benfica do Nené e do Sheu e a equipa do Filipa, no terraço do liceu. Posso enviar-lhe, a si ou a ele, algumas das fotos mais interessantes por e-mail. Preferia que fossem vocês próprios a "blogá-las". O blogue é vosso.
Um abraço.
Adérito Tavares


Respondi:

Espantoso efeito o do tempo nas almas maiores: não as tolhe de memórias simples de que é feita a existência humana! E, afinal, é destes retalhos que é feita a história dos homens. Foi consigo que aprendemos que a História não se repete, mas damos connosco a pedir a Deus que os nossos filhos tenham também por Mestres gente com tamanha paixão e fé na Escola, na Pátria e na Vida.
Vão 12 anos volvidos desse abraço e quatro filhos a justificar o casamento.
No 12º já o não tive por professor - ano 0 na UCP - mas n'alguns antes disso, me recordo bem. O Nogueira de Brito era da minha turma - e bom amigo - e o Araújo também, mais tarde. Das viagens de estudo ficou a memória da alegria de um convívio diferente e da paixão a um Povo e a uma História, que raramente voltei a encontrar.
Este blog - cujo convite a participar permanecerá sempre aberto - nasceu de um jantar, quase espontaneo, no ano passado, ao fim de 20 anos. Em breve haverá outro jantar, já mais alargado (a net é, nisto, um polvo a crescer!) em que a sua presença – e a dessas cadernetas! – será aclamada. Espero que nessa altura ceda, quanto mais não seja para ver no que esta gente se tornou.
O recado ao Xara Brasil ficará dado em post em que, por abuso da liberdade que me concede, publico esta e a sua missiva. E será ele a pedir-lhe que vasculhe a gaveta das fotografias, por certo.
Do menino do cuco só me ocorre dizer que está por fazer, em Portugal, o registo das memórias de quem teve por mestres – na escola, no liceu, na universidade – portugueses que dedicaram a vida, com paixão e verdadeira vocação, a ensinar também a viver. Só assim as novas gerações saberão que vale a pena.
Para além da alegria de o rever nestas linhas, aqui fica a gratidão pela profunda simpatia da resposta e pelo exemplo com que nos continua a marcar.
Há-de aturar-nos uma horas, em breve. Efusivamente, com a mesma indisciplina a que generosamente chama espontaneidade.
Renovo o abraço sem o maçar com mais texto,
Luís

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